Estado responde por quase 4% da produção nacional de borracha. São cerca de 10 mil hectares de seringais no município de Goianésia. Látex goiano é vendido à multinacional francesa Michelin
Fotos: Fernando Leite
“Rua” entre seringueiras em plantação no município de Goianésia, cidade que produz 95% da borracha extraída em Goiás: produtores estão investindo cada vez mais na produção de látex
As mãos de 68 anos de idade de Segundo Braoios Martinez, diretor comercial e um dos acionistas da usina de açúcar e álcool Jalles Machado, localizada em Goianésia, no Vale do São Patrício, a 165 km de Goiânia, apontam orgulhosas as árvores que há quase 20 anos se adensam nas cercanias da cidade. São seringueiras que formam florestas perenes contrastantes com as tradicionais plantações de cana-de-açúcar e pastagens de gado da região. A imagem dos seringais se mescla também, para quem olha às margens da rodovia GO-080, às instalações do complexo industrial sucroalcooleiro de Goianésia, à indústria alimentícia ou à vegetação natural do topo das serras, por vezes um cerrado denso que chega aos vales e recobre de verde o São Patrício. Pelo pioneirismo de Braoios Martinez, a heveicultura, ou seja, o cultivo de árvores de onde se extrai o látex (matéria-prima da borracha), chegou a Goiás. As primeiras mudas de seringueiras foram trazidas por ele de São Paulo no início da década de 1990, apesar de a árvore, do gênero Hevea, ser natural da Amazônia.
Na sala de reuniões, ante a mesa redonda da Jalles Machado, Braoios relembra como foi o início de sua plantação, que hoje conta com 170 mil pés, entre árvores em formação e em efetiva produção de látex (60 mil plantas já estão produzindo). “Comecei meu seringal no meio da soja. As pessoas me tachavam de louco. Diziam que eu ia morrer sem ver o resultado daquela empreitada”, diz o empresário, cabelos brancos, sorriso aberto e bom humor para mostrar à repórter como se dá o processo produtivo da borracha. O fato é que, na maioria das vezes, o agricultor vê o seringal como realidade distante, pois as árvores demoram, depois de plantadas, sete anos para começar o processo de sangria, isto é, para que o látex possa escorrer dos troncos.
O líquido esbranquiçado — alimento da planta, seiva elaborada com elevado teor de hidrocarbonetos — é retirado por trabalhadores, os sangradores, que devem ter como principal habilidade um talento quase artesanal: o manuseio do gebong, faca de nome malásio que pesa cerca de 200 gramas e serve para raspar, de cima para baixo e em formato meio-espiral, a casca da árvore. O látex escorre e cai em canecas de plástico, em um processo inviável de ser mecanizado, feito da mesma maneira desde o início da heveicultura no Brasil. O primeiro plantio foi feito em terras paulistas próximas à cidade de Araraquara, entre os anos de 1916 e 1917, pelo cafeicultor Procópio Ferraz. Ele recebeu as sementes do sertanista e militar Marechal Cândido Rondon, que percorria a Amazônia em expedições. Passaram-se os anos e, às sombras das florestas, continuam os sangradores.
“É uma produção socialmente justa. Ela gera mais emprego do que a cultura da cana, por exemplo. E não são trabalhos temporários. Há serviços para o ano inteiro e os trabalhadores ganham uma média de R$ 1,2 mil. O seringal é uma das plantações que mais gera emprego no campo”, explica o consultor agrícola Agnaldo Gomes da Cunha, especialista que atua na área há 15 anos e que atende a cerca de 50 produtores na região do Vale do São Patrício. Segundo ele, já existe maquinário destinado à sangria a um custo médio de US$ 400 por equipamento. Entretanto, seria necessária uma máquina por planta. “Considerando que em cada hectare há uma média de 500 árvores plantadas, a mecanização é impraticável”, diz.
O produtor rural que tacha de louco quem resolve se dedicar aos seringais, além de se referir à longa espera de sete anos para o início da produção, vê outras dificuldades no processo. Uma seringueira produz uma média anual de 8 quilogramas de coágulo, nome dado ao látex endurecido após repouso de oito horas nas canecas de coleta.
Entretanto, esse valor caracteriza o ápice da produção de uma árvore e só é atingido e estabilizado após o quinto ano em que a seringueira já está produzindo. “Dessa forma, um seringal só se paga a partir do 12º ano de plantio: sete para o início da sangria e outros cinco para atingir os picos máximos”, explica o gerente agrícola da Vera Cruz Agropecuária, Alexandre Pimentel. A empresa faz parte do grupo Otávio Lage, é detentora de 51% das ações da Jalles Machado e conta com duas fazendas de seringueiras, uma em Goianésia e outra em Barro Alto.
Outro problema da heveicultura refere-se ao investimento durante a fase de formação. Nesse processo, sobretudo no primeiro ano em que a planta é depositada no solo, são gastos em valores nominais (não capitalizados) cerca de 25 reais por árvore. “Como cada hectare de um seringal tem 500 árvores, então a média de aportes é de R$ 12,5 mil/ ha”, esclarece o gerente. Dessa forma, se o retorno é demorado e os investimentos são altos, estavam certos aqueles que nos idos 1990 consideraram insanos os sonhos de Segundo Braoios?
Para responder à questão basta analisar o exemplo da Vera Cruz Agropecuária, que possui hoje, em pouco mais de 2 mil hectares de terra, 1,1 milhão de árvores plantadas e um total de 202 mil pés em produção. Entre seus próximos projetos está o de ampliar o cultivo, chegando às terras tocantinenses, na cidade de Sandolândia. O diretor comercial da empresa, Rodrigo Penna, explica que ali uma terceira fazenda de seringais, com 1 milhão de árvores, deve ser implantada. Segundo ele, a estimativa é de que o BNDES financie 60% do projeto. “Estamos aguardando a aprovação do financiamento. Enquanto isso não ocorre, já demos início, com recursos próprios, a uma produção de 150 mil pés”, explica Penna, que é neto do fundador do grupo, o governador de Goiás Otávio Lage (1924-2006).
Considerando apenas as 150 mil árvores que serão inicialmente plantadas no Tocantins a um custo de 28 reais por planta, que inclui da preparação da muda e do solo à mão de obra, os investimentos chegarão a R$ 4,2 milhões. Ora, nenhum empresário lança mão desse aporte se o negócio não for de fato vantajoso. Braoios Martinez, do louco em meio às monoculturas goianas de soja é hoje considerado pelos próprios colegas produtores um empreendedor estrategista. O pioneiro sorri: “Foi um sonho que deu certo”.
O plantio de seringueiras é rentável porque cada quilograma de coágulo é atualmente vendido no mercado por um preço médio de 4 reais. Isso quer dizer que para cada hectare em plena produção, com suas 500 árvores no ápice dos 8 kg de sangria, há uma receita bruta de R$ 16 mil ao ano. Caneta à mão e computador à frente. O diretor Rodrigo Penna e o gerente Alexandre Pimentel comparam esses dividendos aos ganhos da pecuária ou da soja, ramos aos quais a Vera Cruz também se dedica. E eles garantem: após os gastos iniciais, ganhar dinheiro no seringal é apenas uma questão de paciência.
Para se ter uma ideia, em termos comparativos, as lavouras de soja chegam a uma receita bruta anual, por hectare, de R$ 2,7 mil reais, considerando uma excelente produtividade de 60 sacas/ha e o preço da saca em um mercado em alta (46 reais). “Desse valor bruto de R$ 2,7 mil que ganhamos, vai sobrar R$ 1 mil de lucro ao ano por hectare de soja. Nos seringais, da receita de R$ 16 mil lucraremos cerca de R$ 4 mil. São muito mais ganhos”, garante Pimentel. Rodrigo Penna, por sua vez, ressalta que a renda bruta anual por cada hectare de pastagem para a pecuária é apenas de 500 reais. Muito distante dos rendimentos da valiosa borracha.
Os déficits
As diferenças entre as receitas brutas por hectare não são gratuitas. No consumo moderno, a borracha é utilizada da produção de pneus e de correias para veículos e maquinário à fabricação de artigos leves como mamadeiras, chupetas, preservativos ou luvas cirúrgicas. Há sandálias inteiramente confeccionadas com borracha e até parte da pavimentação asfáltica já utiliza essa matéria-prima (nesses casos, oriunda da reciclagem de pneus). Para ilustrar o alto consumo, o gerente agrícola Alexandre Pimentel ressalta: “Nenhuma máquina é só metal. Não adianta a Anglo American chegar a Goianésia, beneficiar minério, extrair metal, se não existir a borracha para ligá-los. Ninguém dessa empresa chegaria à nossa cidade de avião, por exemplo, se não fosse a alta produção de látex.”
E diante da demanda elevada — texto publicado na edição 133 da “Revista Rural” aponta existirem mais de 50 mil artigos que podem levar látex em sua formação — há escassez do produto no mercado, o que justifica os altos preços. De acordo com o Grupo Internacional de Estudos da Borracha (IRSG, do inglês), apenas no primeiro trimestre de 2010 foram produzidas 2,36 milhões de toneladas de borracha natural, advinda da seringueira, e consumidas uma média de 2,4 milhões de toneladas. Ou seja, houve déficit na balança, o que representou 150 mil toneladas que deixaram de ser produzidas, apesar da alta demanda. Já no que se refere à borracha sintética, advinda do petróleo, o saldo foi positivo. Foram 3,2 milhões de toneladas produzidas e 3,1 consumidas. “Mas na totalidade, entre sintética e natural, o mundo consumiu mais do que produziu. Por esses tempos, deixamos de fabricar 36 mil de toneladas de borracha para atender a todo o consumo. Tivemos de consumir estoque. Isso segura o desenvolvimento. Por isso, estamos plantando”, explica o diretor da Vera Cruz.
Goiás
No contexto internacional, os maiores produtores são Tailândia, Indonésia, Malásia e Índia. Durante todo o ano de 2010, por exemplo, os tailandeses produziram 3,1 milhões de toneladas de borracha advinda de seringais, enquanto os indonésios chegaram a 2,5 milhões. “Já o Brasil tem de importar 70% de toda a borracha que consome por falta de produção própria”, diz o consultor agrícola Agnaldo Cunha. Segundo ele, as terras goianas já são responsáveis por quase 4% do total de látex que escorre dos troncos tupiniquins. “Em Goiás, quase 95% dessas sangrias são feitas em Goianésia”, explica.
No município, o grupo ligado à família Lage é detentor dos maiores seringais e atualmente produz, em 10 mil hectares de terra, cerca de 6 mil toneladas de coágulo por ano. São empresários como o pioneiro Segundo Braoios, o também precursor Fernando Morais Ferrari, o produtor rural Gibrail Kanjo, bem como a empresa Vera Cruz e a usina Jalles Machado (que tem cerca de 100 mil árvores). “Nos próximos dez anos, creio que os goianos serão responsáveis por até 15% da produção brasileira de borracha natural, em decorrência das novas áreas plantadas aqui. Ora, do total de hectares plantados, 80% ainda está em formação e não sangra. Há muito potencial”, ressalta com otimismo o consultor agrícola.
“Não tem erro. O mercado está doido atrás de borracha e os preços sobem muito. Nesses últimos tempos, os seringais asiáticos estão em reforma e a alta foi mais acentuada. Chegaram a nos pagar R$ 5,84 por quilograma”, pontua Gibrail Kanjo, conhecido, entre os quase 60 mil habitantes de Goianésia, como Kanjinho. O agricultor tem 600 mil pés de seringueiras, dos quais 160 mil já estão em produção. Segundo ele, nas costumeiras épocas de bonança, sua receita líquida em 1 ha de plantação já chegou a R$ 18,6 mil anuais.
Mas para quem pensa que o cultivo é viável apenas ao grande produtor, o técnico Agnaldo e o empresário Segundo Braoios Martinez garantem que não. De acordo com eles, por ser um negócio de rendimentos em longo prazo, há possibilidades de combinar a produção com milho, soja, abacaxi ou outras culturas. “Em uma floresta de até três anos de idade, as árvores ainda estão pequenas e chega sol aos corredores. Se há luz, podemos fazer o cultivo associado a outras plantações”, pondera Braoios. Agnaldo reitera que, na pequena agricultura, os membros de uma mesma família zelam dos seringais. “Se considerarmos que a mão de obra representa 50% dos custos de produção e que, nesses projetos familiares, o gasto com trabalhadores é quase zero, vemos a competitividade dessas áreas aumentar. Os próprios proprietários sangrarão os painéis. Uma família que tem um alqueire e 2.500 pés pode ter uma receita mensal de até R$ 7 mil”.
Usina para beneficiar a borracha potencializará o lucro
Atualmente, os empresários do agronegócio em Goianésia vendem o látex das seringueiras à Michelin no Mato Grosso e no Espírito Santo. Na região, existe apenas o comércio do coágulo, a borracha dura mais barata, e o látex líquido, utilizado na indústria de artefatos leves (como materiais cirúrgicos), ainda não é produzido. Para que a borracha seja vendida de forma fluida, o gerente agrícola Alexandre Pimentel explica que é necessário o acréscimo de amônia, que elevará o pH da secreção das árvores e evitará que o látex coagule. Na Michelin, os 6 mil kg de coágulo ao ano que chegam de Goianésia são lavados, triturados, secados e prensados. “Assim são feitos os blocos GEB, que têm 25 kg de borracha, saem da usina e chegam às fábricas de pneus”, esclarece Pimentel.
Mas os planos dos empresários do São Patrício vão além dos simples seringais e da venda da borracha in natura à indústria pneumática. Eles articulam a construção, entre as serras e vales da região, de uma usina de beneficiamento do produto. “Contudo o investimento só é viável se produzirmos 10 mil toneladas de borracha por ano. Precisamos, para viabilizar a ideia, de um aumento de 4 mil kg de coágulo ao ano. As árvores existentes possibilitarão essa sangria. Mas não agora”, pondera Kanjo, da Jissara Agropecuária.
O momento econômico é favorável ao adensamento dos seringais, entretanto, há ainda alguns riscos e distorções. As árvores deixam de produzir por apenas dois meses ao ano, quando suas folhas caem e elas são impossibilitadas de fazer a fotossíntese e produzir a seiva elaborada, ou seja, o látex. Dessa forma, há de se proteger as florestas, sobretudo, de dois tipos de praga: os ácaros e os percevejos de renda, que derrubam as folhagens e atrapalham a produção. Risco mínimo se houver um bom gerenciamento agrícola.
Já a distorção tem a ver com o sistema produtivo capitalista. Os empresários afirmam que os sangradores ganham bem e trabalham em boas condições, com uma média salarial de R$ 1,4 mil, a depender da qualidade da sangria, manejando os seus gebongs em um serviço artesanal e leve, poupando-se do sol sob as copas das florestas. Ora, em comparação a outras atividades rurais mais pesadas, como a labuta em um canavial, o empresariado pode estar correto. Entretanto, percorrendo as “ruas” entre as seringueiras, descobre-se que são destinadas 1,5 mil árvores por dia a cada trabalhador. Entre os corredores do seringal, mesmo à sombra, o valor assusta.
Jornal Opção
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