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domingo, outubro 20, 2019

“Há um exagero de atividade criminosa; sociedade não aguenta”

D'Ângelo fala sobre crimes de colarinho branco e ação da Polícia Federal em Aripuanã
MidiaNews
O delegado da Polícia Federal, Carlos Henrique Cotta D'Ângelo: "sociedade nenhuma aguenta tanta atividade criminosa"

Mineiro de Ouro Preto, o delegado da Polícia Federal Carlos Henrique Cotta D'Ângelo está há seis meses em Mato Grosso, onde comanda o setor da PF destinado ao combate ao crime organizado. Neste período, já comandou diversas investigações sobre crimes do colarinho branco, como o desvio de recursos de Prefeituras no interior do Estado.

D'Ângelo, que é policial federal há 20 anos, não acredita na tese de que combater a corrupção é enxugar gelo, em razão dos casos sempre recorrentes de desvios de recursos públicos.

"Eu falo com os policiais para que, sempre que há essa dúvida, imaginar um cenário sem essa atuação, imaginar por um dia ou dois uma sociedade sem Polícia, sem Poder Judiciário. Para a gente chegar a conclusão que nós não estamos enxugando gelo", disse o delegado em entrevista ao MidiaNews.

Apesar disso, ele reconhece que o crime ainda tem força e é recorrente em Mato Grosso e no País. "Em verdade, nós temos um exagero de atividade criminosa. Acho que sociedade nenhuma aguenta tanta atividade criminosa".

Em verdade nós temos um exagero de atividade criminosa. Acho que sociedade nenhuma aguenta tanta atividade criminosa. Todo mundo querendo se dar bem de alguma forma

Na entrevista, D'Ângelo também falou sobre o envio da Operação Bereré à Justiça Eleitoral, a desocupação de um garimpo ilegal em Aripuanã e sobre a proposta de autonomia da Polícia Federal. 

Veja os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Recentemente, o senhor esteve à frente da Operação Tapiraguaia, que investigou desvio de recursos federais, inclusive de merenda de crianças nas cidades de Confresa e Serra Nova Dourada. A impressão que se tem é que quanto mais se combate a corrupção, mais casos aparecem. Combater corrupção no Brasil é enxugar gelo?



Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – Nós podemos dizer que o combate à criminalidade, de uma forma geral, gera a impressão de que nosso trabalho não tem grandes frutos. Mas falo com os policiais para que sempre que há essa dúvida, imaginar um cenário sem essa atuação, imaginar por um dia ou dois uma sociedade sem Polícia, sem Poder Judiciário. Para a gente chegar a conclusão que nós não estamos enxugando gelo.

Em verdade nós temos um exagero de atividade criminosa. Acho que sociedade nenhuma aguenta tanta atividade criminosa. Todo mundo querendo se dar bem, de alguma forma, seja pela corrupção, pelo tráfico, pelo roubo. É muito crime, realmente, mas se a Polícia parar de atuar, se a Justiça parar de atuar, aí, sim, o caos imperará e haverá um regresso aos tempos das cavernas. 

Então, o alento que damos aos nossos policiais e para nós próprios é de que não estamos enxugando gelo. Estamos fazendo um trabalho extremamente necessário. Se isso não for feito, será o caos.
MidiaNews – Com a experiência que o senhor tem, de 20 anos na Polícia Federal, e de combate ao crime organizado, consegue explicar por que as pessoas agem dessa forma? É ganância? O que leva um agente público a roubar dinheiro e até de merenda de crianças?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – Isso é extremamente complexo. Estudou-se muito por séculos a motivação do criminoso violento. O que leva um indivíduo a matar, a estuprar e a ferir alguém? Agora, estudos do chamado “crime do colarinho branco” são recentes. Datam do século passado. O que leva um indivíduo a pretender se locupletar, se enriquecer, ainda que as custas de terceiros? A ver crianças desassistidas e saber que ele, enquanto gestor, em vez de favorecer essas crianças, está andando de carro novo, comprando mansões?

Enfim, ninguém tem resposta para isso. É uma questão extremamente complexa no aspecto científico. Mas, fato é que, as autoridades têm consciência de que o crime de colarinho branco, chamado crime econômico, é muito mais danoso para a sociedade do que o chamado crime violento. Não que o crime violento não seja relevante, é, sim, e gera um temor, uma repulsa. É o chamado crime sujo, o crime que tem sangue, que tem pólvora. Esse o povo não gosta, não tolera.

Por sua vez, a corrupção é um fenômeno que se tolera. Todo mundo cumprimenta e pega na mão de político

Por sua vez, a corrupção é um fenômeno que se tolera. Todo mundo cumprimenta e pega na mão de político ainda que ele seja condenado por um crime. Mas todos se recusam a pegar na mão de um traficante, de um homicida. Que fenômeno é esse? É um fenômeno da sociedade e merece reflexão e estudo. Mas para a Polícia cabe não fazer distinção entre um e outro: é crime, está na lei, a Polícia tem que atuar. 

MidiaNews – O senhor está à frente da Delegacia de Investigação e Combate ao Crime Organizado há seis meses no Estado. O crime organizado em Mato Grosso dá muito trabalho à Polícia Federal?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – Não tenha dúvida. Temos dimensões gigantescas no Estado. A fronteira de mais de 800 quilômetros com o segundo maior produtor de cocaína do mundo [Bolívia]. Uma fronteira extremamente complexa, com grande área de fronteira seca e com rios. Uma área extremamente desabitada. Nós estamos falando do terceiro maior Estado do Brasil, e uma população que não chega a 4 milhões. É um Estado com uma característica bastante complexa, é um Estado que tem tudo para ser extremamente rico em termos de distribuição de renda.

Imaginar que um colosso desses, que tem uma população pequena... Era para nós termos nesse Estado um dos melhores serviços públicos que há no Brasil. Certamente, a razão de não haver isso é o crime de corrupção. E onde há espaço para esse tipo de desagregação social, os crimes violentos também vêm. 
MidiaNews – Em um tempo não muito distante, fomos governados por quadrilhas e tivemos um governador, Silval Barbosa [2010-2014], que confessou diversos crimes do colarinho branco. Acha que o crime organizado se infiltrou na política em Mato Grosso? 

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – Precisamos deixar claro que isso não é um privilégio de Mato Grosso. O cenário nacional é repleto dessas manchas e isso data de séculos. E, certamente, isso é responsável por um atraso social e por elevados índices de criminalidade. Imaginemos que todos os serviços públicos funcionassem a contento, que toda a questão de saúde, transporte, infraestrutura e educação estivessem funcionando 100%. Grande parte das mazelas nacionais seriam superadas. 

Agora, Mato Grosso não discrepa do que vemos em outros Estados. Pessoalmente, tive a oportunidade de atuar em vários Estados, e a questão da corrupção, dos desmandos com recurso público, é uma tônica observada em todo território nacional. 

MidiaNews – Recentemente, o Tribunal de Justiça determinou o envio do caso investigado na Operação Bereré à Justiça Eleitoral. Com essa determinação, é vocês que investigam o caso?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – A Polícia Federal, por determinação constitucional, é o órgão da Polícia Judiciária da União incumbido de investigar crimes de natureza eleitoral. A regra é que a Polícia Federal faça essas investigações em todo território nacional. Então, tudo indica que essa operação, ou os desdobramentos dela, tendem a vir para a superintendência em Mato Grosso.

O Tribunal Superior Eleitoral, sabedor de que a Polícia Federal não está em todos os pontos do território nacional, autoriza que a Polícia Judiciária dos Estados faça concorrentemente investigações de natureza eleitoral. Mas a regra é que a Polícia Federal o faça. 

MidiaNews – O senhor demonstrou muita indignação ao falar dos tais crimes de colarinho branco. Qual recado pode deixar aos políticos que insistem em roubar em Mato Grosso?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – Essa indignação não é nossa, é uma indignação da sociedade. E quem diz que os crimes do colarinho branco ou crimes econômicos são mais danosos à sociedade que os crimes violentos, não somos nós [Polícia Federal], são vários autores. Haja vista, você imaginar que desvios de milhões de merenda ou de medicamentos ou de transporte público vai causar a morte de milhares. Chama muita atenção quando um indivíduo pega uma arma de fogo e mata alguém. Mas o desvio de milhões ou bilhões mata muita gente de inanição. Não resta dúvida que a corrupção, a malversação de recurso público, cria um mal em gerações. São gerações que padecem em razão desses atos inescrupulosos. 

Chama muita atenção quando um indivíduo pega uma arma de fogo e mata alguém. Mas o desvio de milhões ou bilhões mata muita gente de inanição

Se há uma mensagem que podemos passar é de que estamos de olho. Estamos à disposição da sociedade para indicação de onde está havendo esse tipo de coisa. Mas o que esperamos é a consciência. E que àqueles que têm a honrada missão de ocupar cargos públicos, que tenham consciência que tem gente precisando de um bom trabalho.

MidiaNews – Como enxerga o projeto que está no Congresso Nacional que define os crimes de abuso de autoridade cometidos por agente público? Pode ser considerado uma retaliação?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – A gente vê com muita naturalidade. O processo social é esse: ação e reação. Outrora houve uma ação muito violenta da Polícia no período do Regime Militar e em resposta tivemos a Constituição de 1988, que tolheu muito desses poderes e essas atribuições dos órgãos policiais. A sociedade exige da Polícia uma ação mais contundente agora. Poderosos veem nessa ação um atentado contra a sua dignidade. 

A sociedade gira e quem por hoje se vê atingido, amanhã está reagindo, e assim sucessivamente. Agora, falar de retaliação, ou qualquer coisa nesse sentido, seria uma leviandade, porque não temos o conhecimento do que se passa nos bastidores do Congresso Nacional e de outras áreas. 
MidiaNews – Como viu a questão do presidente Jair Bolsonaro ameaçar trocar o superintendente da PF no Rio de Janeiro? Acredita que foi uma intromissão às competências do ministro Sérgio Moro?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – A gente não tem acesso a isso. Ouvimos de colegas, uns indignados outros não. Nunca ficamos sabendo da verdade real. A gente tem que dar a mão à palmatória. Na ocorrência recente em que a Polícia Federal cumpriu busca e apreensão na casa do presidente do PSL, Luciano Bivar, disseram que é para pegar o momento político. É datado de mais de dois meses o pedido. Nós que estamos na “zona do agrião”, sabemos que a maioria das vezes o enfoque político que se quer dar, não há nada disso. É um processo lento, burocrático. 

Quando se fala em um processo de substituição de ministro, a gente fica analisando no senso comum achando que tem uma conotação política, ou uma conotação de interferência, mas vai saber qual o processo está correndo. Então, você entra nessa bolha temerária e leviana, ao meu juízo, e fica especulando. Por isso defendo a autonomia da Polícia Federal, como acontece com o Ministério Público e o Poder Judicário, por exemplo.

MidiaNews – O senhor foi o delegado responsável pela operação que desarticulou um garimpo ilegal em Aripuanã. Essa exploração ilegal de minério é coisa do crime organizado?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – Não necessariamente. A gente percebe que extração ilegal ou irregular de minério tem sempre dois lados de uma moeda. Existe aquele que ganha dinheiro com isso, e, aí, estamos falando da questão criminal, subtração de patrimônio da União, crimes ambientais, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, sonegação fiscal. Nós estamos falando de um rosário de crimes.

Essa operação de Aripuanã, dividida em duas fases, visou mudar esse regramento, atingindo os dois objetivos. Na primeira etapa, o foco foi em cima desses criminosos: aqueles que ganham dinheiro com essa ilegalidade. Então, a Polícia Federal esteve em Aripuanã, mas não para fazer uma desocupação de área, até porque a área é particular. Nosso intento era cessar a atividade garimpeira. Por isso, a necessidade de destruição de maquinários e implosão de cavas. 

MidiaNews – Uma das maiores queixas dos garimpeiros, à época, foi devido a destruição do maquinário, mas existe um regramento a respeito disso. Acredita que essa norma é positiva para o combate a extração ilegal de minérios?

Em Aripuanã, o questionamento que vários nos fizeram foi: o garimpeiro, cidadão humilde, tem um maquinário de R$ 700 mil? Essa revolta é realmente do garimpeiro?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – A norma tem uma razão de ser, ela tem uma lógica. Esse maquinário empregado é instrumento de atividade criminosa. Não raro, fica custoso ao Estado retirar, apreender ou acondicionar esse maquinário. Então, entendeu-se que no caso desse maquinário estar sendo empregado nessa atividade de crimes a destruição pode e deve ser feita in loco. Foi isso que foi feito, não se inovou em nada. Não se trata de nenhum prazer maldoso.

Em Aripuanã, o questionamento que vários nos fizeram foi: o garimpeiro, cidadão humilde, tem um maquinário de R$ 700 mil? Essa revolta é realmente do garimpeiro? É o garimpeiro que está pesaroso pelo seu maquinário destruído? Certamente que não.

MidiaNews – Mas há equipamentos que pertencem, sim, há pessoas mais humildes.

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – Mesmo os equipamentos de pessoas humildes. Caso haja nesses locais, são equipamentos empregados em atividade criminosa. A grosso modo, fazendo uma analogia exagerada, seria imaginar que após a prisão de um ladrão de banco você devesse devolver a ele o armamento. Não faz sentido. São ferramentas para o crime.

MidiaNews – Acredita que a revolta dos garimpeiros pode ter sido a mando de “alguém”? Algum desses chamados “grandes garimpeiros”, que lucram alto com a ilegalidade, estaria persuadindo os garimpeiros a fazerem esse tipo de ação?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – É difícil dizer, mas não se descarta essa possibilidade. De qualquer forma, o momento era de consternação. Era o dia seguinte à retirada deles do garimpo e os ânimos ficam aflorados. Se alguém se valeu dessa situação para explorar ainda mais essa mão de obra humilde que ali estava, que faça seu exame de consciência. Mas não se apresentaram líderes que representavam aquele movimento.
MidiaNews – Em uma reportagem exibida pelo programa Fantástico, da Rede Globo, aparece um vídeo em que o senhor é hostilizado por populares em Aripuanã. Temeu pela sua segurança naquela situação?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – A gente percebe que havia ânimos exaltados. A nossa preocupação era com a segurança dos próprios garimpeiros, mas também com a cidade em si, com os cidadãos de Aripuanã, que estavam trabalhando e temerosos com aquela situação. Havia comércio fechando, estabelecimentos tendo energia cortada. Nós nos vimos na obrigação de esclarecer àquelas pessoas sobre o que estava acontecendo e qual era nosso papel. Conversamos com alguns interlocutores deles e, ao fim, entendeu-se que atitudes impensadas ou de violência não interessava a ninguém. Eles têm um pleito que entendem justo e nós orientamos que procurem os caminhos legais para isso. 

MidiaNews – Pelo que o senhor esta dizendo, o garimpo enriquece poucos e deixa muitos na miséria. É esse o modelo?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – Ao nosso juízo, e pelo relato dos garimpeiros que ali estavam, existe, sim, uma espécie de pirâmide ou estratificação daquelas personagens que ganham muito dinheiro com isso, que seria o topo da pirâmide. A maioria dessas personagens já foram identificadas – uns presos e outros foragidos. Nós estamos falando de milhões de reais com pessoas que compram e vendem esse ouro sem nenhum regramento ou tributação. Então, não há de se falar em benefício social nenhum. Essas pessoas lucram com isso e pronto. Não há recolhimento de tributos. Há, inclusive, relatos de evasão de divisa, que é desse ouro indo para o estrangeiro sem nenhuma fiscalização. Foi relatado por vários garimpeiros que mais de 30 máquinas pesadas foram retiradas às vésperas de nossa ação. Ou seja, perceberam um movimento policial na região. 

Nós encontramos buracos de 50 metros a 60 metros de profundidade. Uma temeridade para quem trabalha ali. Vimos ainda crianças próximas e idosos. Todos naquele convívio em que há um exagerado consumo de droga, bebidas alcoólicas, doenças sexualmente transmissíveis. A própria malária explodiu no Município. Então, é uma questão grave no aspecto ambiental, mas também no aspecto social.
MidiaNews – Acredita que o Governo do presidente Jair Bolsonaro tem um discurso irresponsável quando diz que abrirá portas para a extração de minério em terras indígenas?

Carlos Henrique Cotta D’Ângelo – A gente não tem esse juízo e nem nos é dado fazer esse juízo. O que se tem são leis em vigor e leis sendo cumpridas. Daí a chancela do Poder Judiciário e a obrigação da Polícia Federal cumprir. Quanto às alterações legislativas, não nos imiscuímos disso. Se amanhã mudar o regramento, certamente a Polícia Federal vai tomar postura de acordo com a nova legislação. Hoje, tudo o que se fez em Aripuanã e que se vem fazendo no Brasil é com respaldo na legislação em vigor.

Por CÍNTIA BORGES Do Midia News

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