Da Redação, com Reuters - de São Paulo
Xingu: três irmãos, dois mundos, uma missão
Toda vez que se fala na questão indígena no Brasil, uma referência imediata está nos irmãos Villas-Boas. No começo dos anos 1940, os paulistas Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Boas deixaram para trás uma vida classe média em São Paulo, juntando-se à “Marcha para o Oeste” que os colocou em contato com o ambiente em que passariam a maior parte de sua vida, na selva amazônica, e onde imprimiriam uma marca única como sertanistas – que virou referência, ainda que não acima de críticas e contestações.
Xingu, o filme de Cao Hamburger, exibido na mostra Panorama do Festival de Berlim 2012 e próxima atração no Festival de Tribeca (Nova York) este mês, recupera uma parte desta imensa herança do trio, dos quais ficaram mais conhecidos Orlando e Cláudio, depois da morte precoce do caçula Leonardo, em 1961. Orlando morreu em 2002, Cláudio, em 1998.
O primeiro desafio do filme, com roteiro de Cao Hamburger, Elena Soárez e Anna Muylaert, é o enorme período de tempo que se dispõe a atravessar – e que obriga a narrativa a dar saltos e simplificar episódios.
Apesar disso, Xingu supera dois grandes obstáculos ao humanizar cada um dos irmãos e deixar clara sua inquestionável defesa dos indígenas, que culminou na criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961 – um verdadeiro milagre, que completou 50 anos mesmo diante do assédio de latifundiários e posseiros para exploração de suas riquezas e terras.
Os primeiros a largar São Paulo rumo a Goiás são Cláudio (João Miguel) e Leonardo (Caio Blat), que têm que fingir-se analfabetos para ser aceitos na expedição que, no governo Getúlio Vargas, busca conquistar novos territórios para o chamado “progresso”.
Funcionário de uma empresa petrolífera em São Paulo, Orlando (Felipe Camargo) é o último a abandonar a vida confortável pela incerteza, mas também pela aventura nessa nova fronteira do Brasil. Manifestando uma liderança natural, os irmãos logo se mostram quadros de valor na abordagem de índios isolados, arredios e, não raro, agressivos contra uma invasão branca afoita e causadora de justificada desconfiança.
Sem formação específica para isso, os irmãos logo se tornam naturais interlocutores dos índios, de quem aprendem línguas, costumes, além de tornar-se seus maiores protetores.
Estas boas intenções por parte dos Villas-Boas não bastam para preservar as populações nativas da cobiça econômica e de uma vasta agenda política, que leva especialmente Orlando a tornar-se uma espécie de negociador permanente com os sucessivos governos do país: Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros (no governo de quem se criou o Parque do Xingu), João Goulart e os presidentes militares pós-golpe de 1964.
Se fica em primeiro plano a grande afeição entre os três irmãos, também explodem as diferenças que os separam em diversos momentos da vida – como o dramático conflito com Leonardo por seu envolvimento com uma índia que culmina em sua expulsão de volta para São Paulo, no final dos anos 1950. Da mesma forma, Cláudio nem sempre vê com bons olhos as negociações de Orlando junto aos políticos, num jogo que também acarreta diversas concessões.
Um tema que escoa nítido é a inevitabilidade da chegada dos brancos e o esforço dos Villas-Boas para ganhar tempo para os índios, ao mesmo tempo que lhes permitindo formar novas lideranças entre eles mesmos que, no devido tempo, assumirão as funções paternalistas dos sertanistas com mais propriedade.
Uma prova desta evolução no papel dos indígenas como donos da própria história está no próprio elenco indígena do filme, como Tapaié Waurá (no papel do cacique Izaquiri), Maiarim Kaiabi (Prepori) e Awakari Tumã Kaiabi (Pionim) – cuja autenticidade fala por si.
Uma certa amargura, prova do realismo do filme, também percorre os sentimentos dos dois irmãos sertanistas, no último episódio coberto pelo enredo: a construção da Transamazônica, nos anos 1970, que forçou Orlando e Cláudio, contra a vontade, a contatarem os ainda isolados krenacarore. Um contato, aliás, bárbaro para eles: dos 600 índios conhecidos então, apenas 79 restaram.
Talvez o maior mérito de Xingu, além da qualidade técnica de sua fotografia (Adriano Goldman), montagem (Gustavo Giani) e música (Beto Villares), seja conseguir falar com um grande público sobre temas áridos, como devastação e chacina de populações nativas, sem banalizar nenhum deles.
Matérias Relacionadas:
Fonte: Jornal Correio do Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário