Áudio mostra que posseiros sabiam do retorno dos xavantes para a reserva e em 1992 planejaram a invasão da área
Uma gravação em áudio daquele que pode ser considerado o marco inaugural do conflito na reserva indígena Marãiwatsédé, em Alto Boa Vista, mostra que os posseiros que ocuparam a área há vinte anos tinham conhecimento do retorno dos índios xavantes para o local.
Esta semana o Diário teve acesso à transcrição completa de uma reunião ocorrida no dia 20 de junho de 1992, às 15 horas, no Posto da Mata, distrito que hoje está no centro da polêmica. Do encontro, no qual se discutiu a invasão da área, participaram políticos, advogados e centenas de posseiros. O áudio não deixa dúvida de que todos ali sabiam que a terra seria doada aos xavantes. E que a tática era ocupar e, assim, impedir o retorno – palavra empregada diversas vezes.
Exatamente uma semana antes, havia chegado ao fim a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também chamada de Eco-92, no Rio de Janeiro. Durante o evento, do qual participou ao menos uma centena de chefes de Estado, a italiana Agip Petroli, então dona da área, se comprometeu a devolver a terra aos índios, numa demonstração de interesse pelas causas sócio-ambientais. A empresa havia comprado a fazenda em 1980, batizando-a de Liquifarm Agropecuária Suiá-Missu.
Os xavantes teriam vivido na região até 1966, quando o governo militar os transferiu para a reserva São Marcos, cerca de 400 quilômetros ao sul. A ideia da transferência era permitir o avanço das frentes de ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia.
Um dos primeiros a se manifestar na reunião de 1992 foi o então vereador e candidato a prefeito de Alto Boa Vista à época, Mazinho Kalil. “Essa área já foi da Itália, hoje ela é do brasileiro, hoje ela é nossa; os índios, se forem voltar para suas terras, eles têm que tomar todo o Brasil”, disse ao microfone.
Em seguida, ele passa a palavra ao então prefeito José Antônio de Almeida, conhecido como Baú. “Nós, toda a vida, respeitamos a Suiá e a propriedade, que nós somos um defensor intransigente da propriedade, porque nós temos que respeitar a propriedade para ser respeitados (sic)”, falou. “Quando surgiu (sic) esses primeiros fatos, da possibilidade da volta dos xavante pra região, todo o povo ficou muito preocupado”.
A seguir, o prefeito explica a situação da fazenda, informando que a reserva ainda não estava formalizada. “Esta área ainda não foi passada a escritura para os índios, ainda é da fazenda”, explicou.
Outro personagem da reunião é Filemon Limoeiro, atual prefeito de São Félix do Araguaia e até hoje detentor de terras dentro dos limites da reserva. “Como existia um dono [Agip], como tem um dono, nós respeitamos. Hoje é pra ser jogado na mão dos índios, um direito que eu não sei onde acharam”, disse. “Tem um monte de país que não tem índio, pode levar a metade, pode levar; podem carregar e levarem (sic). Na Itália tem índio? Não, não tem. Leva, leva pra lá. Agora não vem jogar em nós não, atrapalhar uma região, um município recém-criado”. E prossegue: “Se quiser, se for pra trabalhar, se os índios trabalhassem, produzissem, tudo bem, a gente ia respeitar o direito deles também. Só que eles vão atrapalhar nossa região”.
Já na parte final da reunião, Mazinho Kalil faz um alerta aos participantes, delimitando o que poderia e o que não poderia ser ocupado. “Já foi avisado pra todo mundo, essa área daqui do Posto da Mata até o Alto Boa Vista não pode entrar, porque pode dar problema pra nós”, pediu. “Vamos dar um mapa pra cada líder, pra ele saber onde pode entrar e onde não pode entrar”.
Um ano depois da invasão, em outubro de 1993, a área foi declarada, em portaria, ocupação tradicional dos xavantes. A homologação como terra indígena sairia em 1998, por meio de decreto presidencial.
Do Diário de Cuiabá-MT
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