Por Golbery Lessa
A decretação da falência do Grupo João Lyra pelo Tribunal de Justiça de Alagoas, ocorrida no início de outubro de 2012, e temporariamente revertida por meio de recursos dos advogados da empresa, está mais próxima de efetivar-se a partir da decisão do Juiz de Coruripe, Sóstenes Alex, de afastar o presidente do grupo e designar uma comissão do seu Conselho Administrativo para elaborar um plano de resolução da insolvência da empresa.
Caso seja confirmada pela rejeição dos possíveis recursos jurídicos ainda cabíveis, a decisão do Juiz de Coruripe, mesmo sem representar tecnicamente a falência da empresa, de fato retirará do trono um dos vários déspotas não esclarecidos existentes na numericamente diminuta grande burguesia agroindustrial do estado. A singular antipatia emanada da principal liderança do Grupo João Lyra torna o episódio do esvaziamento do seu poder particularmente emblemático, contudo o caso não se esgota nessa dimensão.
Podemos aproveitá-lo para propor uma reflexão sobre o relacionamento entre as singularidades morais dos indivíduos e as funções econômicas e políticas que eles podem exercer no interior de uma formação social, focando no caso alagoano. Nesse tema, uma das questões relevantes é a seguinte: faz algum sentido separar os proprietários das usinas de açúcar entre aqueles que seriam “bons” e aqueles que seriam “maus”?
Dinossauros econômicosApesar de todas as debilidades econômicas que possuem e de constituírem-se na causa principal do atraso alagoano, as usinas criam fortunas milionárias para os seus proprietários e se impõem na paisagem com a perenidade das pirâmides. Como isso é possível? Como um desses verdadeiros dinossauros econômicos pode figurar, em termos de faturamento, na privilegiada centésima colocação do ranking das maiores empresas brasileiras? Isso é possível devido à enorme colaboração do governo federal e, principalmente, pelo fato de que a sociedade alagoana é essencialmente organizada para doar todos os seus recursos, de todas as suas esferas sociais, para que essas empresas possam dar a maior massa de lucro possível aos seus proprietários.
Por um lado, o governo da União, através de subsídios generosos e da reserva do mercado exterior para o açúcar alagoano, afasta a concorrência e todos os outros mecanismos de mercado que representem perigo para esses capitais; por outro lado, a sociedade alagoana e seu aparelho estatal são utilizados por esses capitais como um vasto campo de concentração, no qual podem encontrar ilimitados sacrifícios humanos de toda a ordem e magnitude.
Pela ajuda generosa que oferece ao setor canavieiro o governo federal recebe o apoio de vários deputados federais e senadores alagoanos, os quais, em sua maioria, são patrocinados diretamente pelos usineiros e sempre se colocam como fiéis defensores dos interesses desses capitalistas. A maioria da população alagoana, ao contrário, não ganha absolutamente nada por se constituir em mero instrumento da lucratividade dessas empresas; cada centavo dos lucros das usinas é constituído por cada fato concreto da tragédia social, cultural e política vivida pela maior parte do povo alagoano.
Entre outros fatos conhecidos, as fontes de cada partícula dos lucros da agroindústria canavieira alagoana são as seguintes:
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a morte das crianças e o seu sepultamento em covas rasas;
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a inibição do seu crescimento físico e intelectual pela precariedade dos alimentos e pela debilidade dos sistemas de saúde e educação;
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avelhice precoce de homens e mulheres devido à dureza do trabalho e aos longos períodos de fome e doença;
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a destruição das culturas popular e erudita e de milhares de novos talentos artísticos, literários e científicos; a fome endêmica que atinge toda as regiões do Estado;
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a marginalização de todos os valores morais democráticos e humanistas em benefício da prepotência, das hierarquias ilegítimas e do poder econômico;
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a inexistência de recursos estatais para a constituição de políticas pública adequadas;
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a repressão à liberdade de pensamento e de organização sindical e política;
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a destruição das estradas, da rentabilidade do sistema energético e de outros elementos da infraestrutura sob a responsabilidade dos órgãos do Estado;
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o descumprimento das legislações trabalhista e ambiental;
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e o aniquilamento de todos os recursos naturais mais importantes, como as matas, os animais silvestres e as fontes de abastecimento de água potável.
Modelo arcaico e sem escrúpulos Somente nessas circunstancias a agroindústria alagoana torna-se um elemento bastante lucrativo e a empresa do fulano de tal pode surgir bem colocado no ranking da Revista Exame, ou seja, apenas em condições tais que a vida no Estado de Alagoas perde qualquer verdadeiro sentido humano e a maioria da população percebe cada novo dia como um fardo incômodo e a existência como uma sucessão monótona de tragédias, crueldades, sofrimentos e humilhações.
As precárias condições de vida que surgem desse modelo econômico tendem a tirar a legitimidade ideológica da burguesia agroindustrial; mesmo gastando muito em várias formas de propaganda ideológica, esta classe está sempre na iminência de ficar desmoralizada e desacreditada diante da opinião pública. O seu domínio, geralmente, sustenta-se muito mais na coerção do que no consenso, ou seja, mais na força bruta do que na sua capacidade de convencer as outras classes sociais das positividades do modelo social que propõe. Para que evitemos profundos erros teóricos e políticos, é preciso perceber claramente que esta classe social não tem condições objetivas de propor uma alternativa de desenvolvimento menos precário e desumano; as suas debilidades econômicas congênitas empurram-na para uma brutalidade constante e crescente e para o mais radical estreitamento político.
Não há qualquer setor progressista, democrático e anti-imperialista no seio dessa burguesia. Nenhum membro dessa classe dominante pode propor o progresso, a democracia e a defesa dos interesses de Alagoas e da soberania nacional porque, como vimos, essa classe não representa o polo moderno no nosso Estado, ela representa a união indissolúvel de um moderno atrasado em relação ao moderno das regiões mais desenvolvidas do país com um arcaico também mais acentuado do que o arcaico dessas regiões. Para esta classe social, combater o arcaico seria combater parte de si mesma.
A crueldade usada pelos usineiros nas relações com seus trabalhadores e com o resto da sociedade é uma imposição econômica férrea e não algo meramente subjetivo, ou seja, nas condições econômicas peculiares da agroindústria alagoana, um capitalista vitorioso tem que ser um capitalista sem nenhum escrúpulo; é o próprio modelo econômico que impõe um baixíssimo nível de moralidade econômica e política a esse personagem.
Não existe lado bom Dessa maneira, em Alagoas só chegam à função de usineiro os indivíduos que se despojam de qualquer princípio ético na esfera econômica e política e percebem o lucro privado como o único e exclusivo sentido da sua vida; isso faz com que, naturalmente, os indivíduos de caráter mais perverso acabem sendo escolhidos pelo sistema para ocuparem essa alta função dirigente. Evidentemente, essa perversidade pode ser disfarçada, até certo ponto, por um bom nível de cultura, pela amabilidade no trato pessoal, pela religiosidade e pelos inúmeros favores pessoais que uma grande fortuna e uma ampla influência são capazes de bancar.
O silêncio da sociedade civil alagoana diante da morte de um usineiro demonstra cruamente esta realidade. Pouquíssimos articulistas e personalidades públicas, mesmo entre os conservadores, se dispõem a elogiar o capitalista falecido, intuindo o absurdo desse tipo de operação discursiva. Aqueles que se arriscam a fazer um comentário, às vezes por dever de ofício, nunca se referem à atuação econômica e política do falecido, sempre circunscrevem o discurso à esfera privada, onde é possível encontrar alguma positividade na personalidade de qualquer pessoa.
Portanto, a falência do Grupo João Lyra não significa a extirpação do “lado mau” da agroindústria alagoana, simplesmente porque não existe “lado bom” neste setor econômico. O líder do grupo em decadência foi percebido como particularmente antipático por ter a inabilidade de não usar a discrição hipócrita típica dos outros grupos empresariais canavieiros, pelo fato de ter assumido abertamente uma posição cínica diante das crueldades economicamente determinadas do processo de trabalho nas usinas.
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