Moradores da cidade sofreram com o preconceito e tentaram impedir ação.
Local tornou-se o único depósito de lixo radioativo definitivo do Brasil.
Entrada do depósito onde estão armazenados os rejeitos do césio-137 (Foto: Adriano Zago/G1)
Durante oacidente radiológico com o césio-137 em Goiânia, em setembro de 1987, uma das grandes preocupações do governo foi se desfazer da substância radioativa e dos materiais que tiveram contato com ela. No dia 13 daquele mês, catadores de lixo abriram uma máquina de radioterapia abandonada e retiraram de lá uma pedra brilhante, que era do material radioativo. A pedra atiçou a curiosidade de várias pessoas -- quatro morreram na época e muitas outras sofreram com os efeitos da radioatividade. Roupas, sapatos e outros objetos pessoais dele criaram os chamados "rejeitos" -- lixo tóxico que se tornou um problema de saúde. A solução, após a análise de oito locais em todo o Brasil, foi criar um depósito em Abadia de Goiás, na Região Metropolitana de Goiânia, que -- apesar da revolta da população local na época -- acabou se tornando o único depósito de lixo radioativo definitivo do Brasil.
Para isso, foi necessário levar para a cidade uma unidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Porém, essa iniciativa causou polêmica. “Foi uma loucura porque na época não sabíamos o que era césio-137, nós não tínhamos conhecimento. Víamos o que estava acontecendo em Goiânia e o governo queria trazer aquele negócio para nós. Ficamos malucos”, lembra o comerciante Sebastião Mendonça, de 43 anos, um dos participantes das manifestações contra a ida dos rejeitos para a cidade.
No dia 28 de setembro de 1987, a Cnen, que tem sede no Rio de Janeiro, foi acionada pelas autoridades. O grupo de emergência da comissão era treinado para atender acidentes em reatores nucleares. Uma cápsula de césio-137 aberta em uma capital brasileira era novidade. “Ninguém imaginava que seria uma fonte de césio. Tanto que, logo que fomos comunicados pelo primeiro grupo que foi a Goiânia, achamos que tinham medido errado. Pensamos: ‘não pode ser isso’. E quando chegamos a Goiás, vimos que realmente era um acidente maior do que se esperava”, recorda Cesar Luiz Vieria Ney, mestre em energia nuclear e atual supervisor de radioproteção da Cnen em Goiás. Carioca, ele chegou a Goiânia no dia 29 de setembro.
Aparelhos que detectam material radioativo, usados na época do acidente (Foto: Adriano Zago/G1)
A princípio, apenas o grupo de emergência havia sido deslocado, mas, por causa da grande repercussão e gravidade do acidente, o trabalho ganhou reforço. Até mesmo o pessoal do administrativo da comissão foi convocado a atuar no caso. Ao todo, 700 pessoas da Cnen atuaram no acidente do césio-137.
Mesmo com a grande quantidade de pessoas trabalhando, o serviço era difícil, pois as pessoas tinham medo da contaminação. O Exército Brasileiro também desembarcou em Goiás. “Tinha o problema de segurança, de pôr a faixa e não deixar ninguém entrar [nos locais contaminados]. O policial tinha medo. A pessoa ultrapassava e ele não ia atrás por medo”, conta Cesar Luiz.
Segurança
Com o controle do acidente e a descontaminação das áreas atingidas -- um total de sete locais em Goiânia --, gerou-se uma grande quantidade de rejeitos. A quantidade de rejeitos oriundos dos 19 gramas de césio concentrado chegou a 40 mil toneladas.
Depósito provisório do césio-137, em Abadia de Goiás (Foto: Divulgação/Cnen)
Na época, o controle foi feito a partir da retirada dos materiais das áreas que estavam contaminadas. Tudo foi embalado. Para armazenar os rejeitos, foram usados tambores metálicos de 200 litros, caixas de um metro quadrado (mil litros) e até um contêiner marítimo, devido à grande quantidade de material. Os recipientes passaram por testes físicos e de resistência para garantir a segurança.
Inicialmente, os rejeitos foram estocados de forma provisória no mesmo lugar onde hoje funciona a unidade da Cnen em Abadia de Goiás, porém, de forma provisória. Controlado o acidente, um projeto feito a longo prazo definiu o local onde os rejeitos seriam definitivamente guardados.
Cesar Luiz e Leonardo Lage, do Cnen em Goiás
(Foto: Adriano Zago/G1)
Para escolher Abadia de Goiás, os pesquisadores da Cnen realizaram uma série de testes para saber se a área era propícia a receber o depósito dos rejeitos do césio-137. Foi criado, então, um laboratório de radioecologia. O lençol freático da região foi um dos principais objetos de estudo. A equipe constatou que o solo não obtinha águas subterrâneas que abasteciam o município. As pesquisas também comprovaram que, se ali depositado, o césio não vazaria.
Revolta da população
"O povo quis ir embora. Ninguém queria ficar morando aqui. Diziam que todos iam adoecer. Todo mundo tinha medo”, conta a aposentada Francisca Pereira Cardoso Cruz, de 79 anos, que viveu de perto o drama dos moradores de Abadia.
“Invadimos a BR-060 [rodovia que liga Goiânia a Abadia] e tentamos bloquear a vinda do césio. Foi um presente de grego que recebemos naquela época. As manifestações duraram uns três dias ou mais. Passamos a noite às margens da BR, em vigília. Mas fomos surpreendidos porque para cada morador tinha o dobro de policial e eles ficavam na porta das casas para nos vigiar. Lutei muito para o césio não vir para a Abadia”, lembra Sebastião Mendonça.
Depois de todos os estudos realizados e do local definitivo do armazenamento decidido, o material foi distribuído em dois depósitos próximos um do outro. Tudo foi reembalado, para garantir que o material radioativo não vazasse, e colocado dentro de uma espécie de piscina de concreto impermeabilizada. Por cima, foram colocadas terra e grama. Ao todo, segundo Cesar Luiz, o que sobrou das 19 gramas de césio e os materiais contaminados estão protegidos por oito barreiras que impedem o césio de entrar em contato com o meio ambiente.
“A população, inicialmente, não quis. Virou carro na estrada, não queria deixar o material entrar. Teve uma vez, quando já estava tudo estocado aqui de forma provisória, que os manifestantes quiseram invadir e o oficial que estava de trabalho no dia teve uma boa ideia e falou que todos podiam entrar e que cada um podia pegar um tambor e ir embora. Mas, claro, ninguém teve coragem”, recorda Cesar Luiz.
Manutenção
O depósito definitivo foi construído em 1997, mesmo ano em que foi inaugurado o Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN-CO), unidade da Cnen em Goiás. O local fica dentro do Parque Estadual Telma Ortegal, que tem 1,6 milhão de m². A estrutura que abriga os rejeitos foi projetada para resistir 300 anos intacta e preparada desastres como tremor de terra e queda de avião. O depósito do césio-137 tornou-se, então, o único depósito de lixo radioativo definitivo do Brasil.
Sebastião Mendonça é comerciante de Abadia
(Foto: Adriano Zago/G1)
A Cnen disponibiliza à unidade do Centro-Oeste uma verba para a manutenção do solo. “Conservamos principalmente a parte dos morros com grama. Temos um sistema com bomba d’água na beira de um rio que leva a água até esses morros, para que fiquem sempre regados. Inclusive, quando ocorrem queimadas no parque nós ligamos a bomba e a única coisa que fica verde são os morros. O pessoal até diz que é o efeito césio, mas não. Nós usamos a água para manter aquela área intacta. Se der erosão no solo, pode expor uma parte do concreto. Mas isso é algo difícil de acontecer”, explica o supervisor de radioproteção, Cesar Luiz.
As sete principais áreas que foram expostas à contaminação em Goiânia ainda hoje são monitoradas. “Na época do acidente, tudo que estava nesses locais foi removido até se chegar a um nível de radiação que não oferecesse risco à população. Depois do final de dezembro de 1987, todas elas foram avaliadas e estavam livres para utilização. Algumas não estão sendo utilizadas talvez por medo, mas já estão liberadas”, explica Cesar Luiz.
Mesmo sabendo que já não há mais risco de contaminação, os técnicos da Cnen em Goiás continuam monitorando as áreas duas vezes ao ano. O objetivo, segundo o especialista, “é mostrar para a população que realmente não existe mais risco”.
Cesar Luiz Vieira trabalhou no acidente do césio-137, em 1987 (Foto: Divulgação/Cnen)
Três dias depois de chegar à capital goiana, o mestre em energia nuclear Cesar Luiz recebeu a missão de transferir as pessoas contaminadas para a unidade de saúde, que atualmente é o Hospital Geral de Goiânia (HGG). Algumas delas já sofriam com os graves efeitos da radiação. “O impacto social é muito grande. Tinha a discriminação do goianiense com o pessoal que morava na Rua 57 [um dos locais contaminados]. O goiano quando saía do estado era maltratado, o brasileiro saía do país e também era malvisto. São coisas que acontecem quando há um acidente desse tamanho. O medo das pessoas era muito grande. Tive colegas do Rio de Janeiro que vieram trabalhar no acidente e os parentes deles pararam de fazer visita depois”, retrata.
Para ele, o acidente foi um verdadeiro desastre. “Na época, eu já estava trabalhando na Cnen há 14 anos na parte de ciclo de combustível e na medida de minério. Então, já conhecia alguma coisa do assunto, mas a dificuldade foi muito grande porque extrapolou a radiação, pois teve um impacto de cidade social”, analisa.
Discriminação
A auxiliar de serviços gerais Divina Paula Silva de Souza tem 50 anos e é natural de Abadia de Goiás. Ao se casar, ela saiu da cidade e voltou há exatos 20 anos, quando estava grávida de seu segundo filho. Divina Paula, assim como os demais abadienses e goianos, foi vítima do preconceito causado pelo acidente.
Divina Paula é funcionária do Cnen, em Abadia
(Foto: Adriano Zago/G1)
Para notar a diferença no tratamento, não era preciso ir muito longe, bastava ir até a capital. “Quando o césio veio para cá, meus filhos eram pequenos. Eu ia levá-los ao médico, em Goiânia, e, ao falar que morava em Abadia, as atendentes se afastavam de mim. Éramos muito discriminados. Na época, eu estava grávida do meu caçula e o pessoal dizia que ele iria nascer com problema, imperfeito. Mas ele nasceu perfeito e saudável”, comemora Divina.
Para o comerciante Sebastião Mendonça, Abadia de Goiás, que antes era um distrito de Goiânia, foi municipalizada em razão do acidente com o césio-137. “Penso que a cidade foi municipalizada para que não houvesse essa ideia de que o césio ficou em Goiânia”, supõe.
O coordenador do Cnen no Centro-Oeste, Leonardo Bastos Lage, é de Anápolis, cidade a 55 km de Goiânia, e lembra que na época do acidente estava na capital para um evento internacional de motovelocidade. "Senti de perto todo esse preconceito e dificuldade que nós goianos tivemos para superar as questões causadas pelo acidente. Tanto no trabalho em Brasília, pois eu já era funcionário federal, com os veículos com placa de Anápolis ou de Goiânia, como nas nossas viagens de turismo, de lazer. Tínhamos uma rejeição bastante significativa”, relembra.
Com o tempo, os cidadãos de Abadia se acostumaram com o césio-137 e aproveitaram dos benefícios levados para a cidade oriundos da instalação da unidade da Cnen na região. “Muita gente achava que a cidade não ia crescer. O jeito foi lidar com a realidade e conhecer o césio-137, buscar conhecimento, entender o que estava acontecendo. Houve uma preocupação muito grande enquanto não aconteceu o depósito definitivo do material. Hoje é tranquilo, outra realidade. Mas, na época, ficamos na insegurança total”, afirma Sebastião Mendonça. Ele conta também que a ida do césio para Abadia divulgou a cidade e que hoje não vê mais ninguém dizendo que tem medo. “Hoje há segurança total”.
Servidores do Cnen vestiram macacões com a frase "Eu amo Goiânia" (Foto: Reprodução/TV Anhanguera)
Divina Paula, que trabalha na Cnen do Centro-Oeste há 12 anos, afirma que, mesmo com toda a tragédia e impasse vividos pela população, hoje a vida segue tranquilamente. “Todos os profissionais da Cnen esclarecem bem as coisas para nós. Até as pessoas de fora nos veem diferente, eles viram não tem mais todo aquele perigo”.
Por Humberta Carvalho Do G1 GO
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